A omissão de um artigo no título da obra de Stefan Zweig vertida para o português pode ter contribuído para deformar nossa autoimagem nacional
Gabriel Perissé
Considerado o mais famoso de todos os textos já escritos sobre
o Brasil, Brasilien, ein Land der Zukunft, do austríaco Stefan Zweig (1881-1942), tornou-se uma espécie de eterna profecia: somos o país do futuro... desde 1941, quando a obra foi publicada.
Mas façamos uma observação importante. O livro, escrito em alemão, possuía um artigo indefinido no seu título - ein -, deixando claro que não se tratava do único país do futuro que existia. Stefan Zweig nos via como um país do futuro, entre outros.
O problema é que, na primeira edição brasileira, o título surgiu sem o artigo: Brasil, País do Futuro. Aliás, o título em francês também omitia a pequena mas decisiva partícula: Le Brésil, Terre D'Avenir. E igualmente o primeiro título em espanhol: Brasil: País del Futuro.
Um x OÉ enorme a diferença entre um país do futuro e o país do futuro por excelência. Especialmente naquela hora, em plena Segunda Guerra Mundial, quando a sobrevivência da Europa estava ameaçada. E nós, como "país do futuro", nos enchíamos de orgulho... Perigoso orgulho, no contexto da ditadura getulista.
Talvez esse equívoco tradutório tenha contribuído para deformar nossa autoimagem nacional, criando obstáculos culturais para um verdadeiro avanço em direção ao porvir.
A primeira tradução brasileira, já em 1941, ficou a cargo do psiquiatra Odilon Gallotti (também tradutor de Freud). A segunda tradução, de 2006, com o artigo indefinido em seu devido lugar - Brasil, Um País do Futuro -, foi assinada por Kristina Michahelles.
Para o autor, o Brasil era país pacífico, ainda no começo de sua história civilizatória, país destinado a ser um dos mais importantes fatores do desenvolvimento futuro do mundo. Era "reserva do mundo para o futuro", pela riqueza do solo... e do seu subsolo. Havia lugar de sobra para inúmeros habitantes, para o cultivo da terra e para a extração de tesouros subterrâneos.
Futuro
Zweig argumentava que a extensão territorial brasileira é força psíquica nada desprezível.
O espaço dilata a alma, infunde confiança, empurra um povo para o futuro. Mas ao mesmo tempo contemplava uma imensa parcela da população brasileira sem ocupação, ou sem ocupação definida, incapaz de produzir e consumir.
Zweig mencionava 25 milhões de brasileiros à margem da vida econômica. Gente subaproveitada em espaço excessivamente vasto. O autor não hesitou em afirmar que o país sofria de anemia.
Ao mesmo tempo, elogiava os avanços dos meios de transporte e outras iniciativas. Elogiava o governo Vargas. O Brasil anêmico reagia. As cidades começavam a crescer mais velozmente. O país aprendia a pensar nas dimensões do futuro. E havia cidades como Rio de Janeiro e São Paulo.
O trecho do livro que escolhi para a comparação entre as duas traduções (editadas abaixo) é o primeiro parágrafo do capítulo dedicado à capital paulista.
O
original e as versões
BLICK AUF SÃO PAULO 1
Stefan Zweig
Um die Stadt Rio de Janeiro
darzustellen 2, müßte man eigentlich ein Maler
sein, um São Paulo zu schildern, ein Statistiker oder Nationalökonom. Man müßte
Zahlen türmen 3und vergleichen, Tabellen
nachzeichnen und versuchen, Wachstum in Worten sichtbar zu machen; denn nicht
seine Vergangenheit und nicht seine Gegenwart machen São Paulo so faszinierend,
sondern sein gleichsam unter der Zeitlupe sichtbares Wachsen und Werden, sein
Tempo der Verwandlung. São Paulo gibt kein Bild, weil es seinen Rahmen ständig
erweitert, weil es zu unruhig 4 ist in seiner rapiden
Veränderung; man zeigte es am besten als Film und zwar als einen, der von
Stunde zu Stunde rascher abrollt; keine Stadt Brasiliens und wenige der ganzen
Erde lassen sich an Ungestüm der Entwicklung dieser 5 ehrgeizigsten und dynamischsten
Brasiliens vergleichen.
SÃO PAULO 1
Odilon Gallotti
Para
apresentar a cidade do Rio de Janeiro 2 teria eu propriamente que ser
pintor e para descrever São Paulo precisaria ser estatístico ou economista.
Teria que reunir 3
números e
compará-los, copiar tabelas e tentar tornar compreensível por palavras o
crescimento, pois não são o passado e o presente de São Paulo que o tornam tão
fascinante, mas sim o seu crescimento, desenvolvimento e velocidade de
transformação, por assim dizer, vistos numa película cinematográfica feita em
câmara lenta. São Paulo não fornece um quadro, porque constantemente se está
ampliando 4 e sua transformação se opera com
muita rapidez. A melhor maneira de mostrá-lo seria por meio duma película, duma
película que de hora para hora se fosse desenrolando mais depressa. Nenhuma
outra cidade do Brasil e poucas do mundo inteiro podem comparar-se em
impetuosidade de desenvolvimento 5 a essa, que é a mais ambiciosa e
mais dinâmica do país.
OLHAR SOBRE SÃO PAULO 1
Kristina Michahelles
Para representar a cidade de São Paulo seria preciso ser um pintor 2. Para
descrever São Paulo, um estatístico ou um economista. Seria preciso amontoar
números e compará-los, 3 copiar
tabelas e tentar transcrever o crescimento em palavras, pois não é o passado ou
o presente que tornam São Paulo uma cidade tão fascinante, e sim o seu
crescimento e o seu porvir, a rapidez de sua transformação, vistos em câmera
lenta. É difícil ter uma imagem estática de São Paulo porque a cidade está
constantemente se ampliando, porque é demasiado irrequieta 4 em sua rápida transformação. A melhor maneira de mostrá-la seria
através de um filme, um daqueles filmes que de hora em hora se fosse
acelerando. Nenhuma cidade do Brasil e poucas no mundo inteiro podem ser
comparadas em impetuosidade à evolução 5 dessa que é a cidade mais ambiciosa e mais dinâmica
do país.
Gabriel Perissé é fundador e
pesquisador do Núcleo Pensamento e Criatividade
www.perisse.com.br

Para traduzir o futuro