Quem são e como trabalham os intérpretes que traduzem os diálogos entre os chefes de Estado
Foi uma cena constrangedora. A reunião da União Européia, em Bruxelas, corria bem até o presidente de um sindicato patronal da França anunciar, em bom francês, curto e grosso, que falaria inglês, “o idioma dos negócios”. O parlamento, acostumado a seguir o protocolo no qual cada representante discursa no idioma pátrio, assentiu. O presidente da França, Jacques Chirac, não. Em súbito rompante, abandonou a reunião. Pode-se atribuir a diatribe de Chirac ao já lendário nacionalismo francês, que no caso do atual presidente por vezes beira a xenofobia. O mal-estar diplomático, para além das disputas políticas, chama a atenção para uma profissão crucial nos encontros de chefes de Estado e nas reuniões de negócios: a tradução simultânea. Ela resolveria a confusão de Bruxelas. A atividade pode parecer simples, soar como uma espécie de mero leva e traz de palavras e frases. Não é. “Exige concentração e profundo conhecimento”, diz Sieni Campos, profissional que acompanhou o presidente Lula em viagem oficial à França.
A indústria da tradução oficial ao redor do mundo é gigante - movimentada pela globalização, reuniões de negócios e conferências internacionais. Somente a operação de tradução no parlamento da União Européia consome US$ 875 milhões por ano. É trabalho que envolve centenas de tradutores, especialistas nos 21 idiomas oficiais dos países membros do bloco. No Brasil, ainda não há um número preciso que possa dar uma dimensão do mercado. Sabe-se, contudo, que o idioma mais procurado ainda é o inglês e os mais valorizados são o japonês e o alemão cujos preços são 30% superiores à média. O mandarim chinês é apenas uma promessa de futuro. Trabalha-se por dia de trabalho, que não pode ultrapassar as seis horas, para evitar desgaste, sempre muito grande. O valor varia de acordo com a qualificação e experiência do profissional. O preço mínimo sugerido pelo Sindicato Nacional dos Tradutores é de R$ 1 mil por jornada. “Para ser bom tradutor é preciso pelo menos quinze anos de treinamento”, diz Suzana Mizne, presidente da Associação Profissional dos Intérpretes de Conferência.
O conhecimento da língua, evidentemente, é obrigatório. Mas parte do segredo está na entonação das palavras. Ou seja, uma frase mal colocada ou um tom de voz mais áspero pode comprometer o diálogo entre dois países ou pôr fim a um negócio. É possível que, sem bons intérpretes, do russo para o inglês e vice-versa, Gorbachev não teria se entendido com Reagan e com Bush pai, e a Guerra Fria ainda estaria aí. Os intérpretes de autoridades são uma sombra. “Quando traduzo, sou a voz da pessoa”, resume Sieni. Para onde quer que a pessoa vá, lá estão os intérpretes com o queixo colado quase no ombro. Sabem tudo o que se passa nas conversas confidenciais e presenciam momentos históricos. Para que as informações dessas reuniões não vazem, são obrigados a assinar um contrato de confidencialidade.
O trabalho torna-se ainda mais sutil quando o profissional é obrigado a lidar com diferentes personalidades e estilos no trato com o idioma. O presidente Lula, apesar de boquirroto no cotidiano brasileiro, é extremamente formal quando está com outros chefes de estado. Mesmo assim, não perde chance para esgrimir seu vocabulário popular. O intérprete oficial da presidência, Sérgio Xavier Ferreira, que acompanhou Lula em reuniões com o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, e com a rainha da Inglaterra, Elizabeth II, já revelou que é surpreendido por menções às “quebradeiras de coco de babaçu” e outros termos típicos do Brasil, de tradução complexa. Mas isso não é nada se comparado a uma gafe que o presidente cometeu em 2003, em uma viajem à Namíbia, na África. Durante o discurso, Lula soltou uma frase infeliz. “Quem chega a Windhoek não parece que está em um país africano. Poucas cidades do mundo são tão limpas, tão bonitas arquitetonicamente e tem um povo tão extraordinário como tem essa cidade”, referiu-se Lula à capital da Namíbia. Ao traduzir para o inglês, Xavier omitiu a palavra “limpa” e pulou para o comentário sobre a beleza da cidade, evitando a ofensa ao continente africano. Traduzindo: “salvou a pátria”
Por Carlos Sambrana
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